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Quando a realidade vira ficção: na contramão da geopolítica e saúde em tempos de pandemia no Brasil

Posted on June 17, 2020
Man with mask sitting

By: Anne Dorothée Slovic, Professora Doutora e pesquisadora do projeto Salurbal – Universidade de São Paulo  
Lídia Maria de Oliveira Morais, Bióloga, mestre em Desenvolvimento Sustentável e pesquisadora do projeto Salurbal pelo Observatório de Saúde Urbana de Belo Horizonte OSUBH-Universidade Federal de Minas Gerais
José Firmino de Sousa, pesquisador do projeto Salurbal, Fiocruz Salvador
Waleska Teixeira Caiaffa, Investigadora do projeto Salurbal, MD, PhD, MPH

Uma das mais famosas músicas brasileiras, composta por Jorge Ben Jor, refere-se ao Brasil como “um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.  No entanto, por trás de toda essa beleza tropical (ou o que resta dela), esconde-se um país onde as desigualdades sociais, precariedade no acesso à saúde, violência, corrupção e luta pelo poder se refletem na triste realidade enfrentada pela grande maioria da sua população. Isso é particularmente válido nas cidades brasileiras onde o fenômeno da urbanização marcado pela precarização do trabalho e aumento acentuado de sua informalização se sobrepõe a esses problemas. Há décadas, cidades brasileiras enfrentam falta de saneamento básico, segregação e moradias precárias. Neste contexto de pandemia, esses velhos problemas acabaram ficando mais evidentes, sobretudo no que tange à capacidade de resiliência da população mais vulnerável e a competência de seus gestores no enfrentamento da doença.

A AMARGURA DO PAÍS TROPICAL

Foto: Anne Dorothée Slovic

informal setting with trashMuito tem sido falado sobre COVID-19 e as consequências da pandemia: medidas de isolamento social, quarentena, lockdown, interdição do comércio, trabalho remoto, recessão econômica, saturação dos serviços de saúde, perda de familiares e amigos, luto pelas pessoas e pelo modo de vida que costumávamos ter. No caso do Brasil, esse quadro se agrava pela conjuntura atual.  Política caótica, com sucessivas contradições entre lideranças nas orientações à população, uma economia neoliberal sucateada e em plena recessão, instituições fragilizadas e ciclos viciosos de caráter ideológico onde se boicota qualquer tentativa articulada de organização em nível nacional para o combate à epidemia. Com a iminência das próximas eleições municipais, a disputa política entre prefeitos das principais cidades do país, governadores e a Presidência da República é sentida nas ruas, nas atitudes da população, na dificuldade em se estabelecer medidas de combate à epidemia e na exaltação da falsa dicotomia entre saúde e economia. Acrescenta-se a esse cenário o agravante das fake news – fenômeno chamado de “infodemia” pela Organização Mundial da Saúde, confundindo a população e induzindo à ignorância e ao pânico sobre a doença e os cuidados necessários.

No mundo inteiro, os efeitos do isolamento social, do fechamento de comércios e equipamentos de serviços e lazer estão sendo vivenciados de forma muito diversa, conforme o estrato socioeconômico e as condições de moradia e trabalho. No Brasil, este fator é acentuado, considerando que vivemos em um dos países com distribuição de renda mais desigual do planeta. Aqui, a miséria permanece, e grande parcela da população urbana vive em condições precárias à margem da sociedade, em assentamentos informais como as favelas, sem condições sanitárias e estruturais adequadas para a vida. O que dizer da perspectiva de tomar as medidas necessárias para conter a disseminação do vírus? Com mais de 610.000 casos conhecidos, menos de quatro meses após o relato oficial do primeiro caso, no início de junho o Brasil contou mais de 34.000 mortes e meros 986.000 testes realizados[1].

Hospitais públicos em várias capitais viveram e vivem momentos críticos, com falta de vagas nas Unidades de Terapias Intensivas (UTIs) de Manaus e Belém.  Com a interiorização dos casos no país, a situação tende a se replicar em outras cidades. Em algumas das principais capitais do país, como São Paulo, Salvador, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, as prefeituras adotaram diversas medidas para o enfrentamento da COVID-19, implementadas a partir da primeira quinzena de março. Desde o início da epidemia, o Estado e a cidade de São Paulo tornaram-se rapidamente o epicentro dos casos, seguidos nessa escalada pelo Rio de Janeiro.  Entretanto, cidades como Manaus, Recife e Belém foram as primeiras a enfrentar o caos nos sistemas de saúde e na forma de lidar com seus mortos. Belo Horizonte, Porto Alegre e Salvador, por outro lado, têm se mostrado mais diligentes no controle do espalhamento da doença. Ainda assim, se defrontam com a subnotificação de casos. Estes locais, apesar da epidemia seguir progredindo em número de casos e de mortes, ainda são considerados com capacidade de atendimento pelo Sistema Único de Saúde (SUS). A propósito, o SUS tem demonstrado bravamente sua importância, apesar do irrisório volume de investimentos experimentado nos últimos anos. A figura abaixo apresenta imagens de hospitais de campanha construídos, em sua grande maioria, com recursos do SUS.

Hospitais de campanha do Brasil
Brazilian temporary hospitals
Foto: Google Images

INTERIORIZAÇÃO E PERIFERIZAÇÃO DA EPIDEMIA

No Brasil, a situação nas áreas urbanizadas é grave e instável, e o grande desafio se apresenta no momento da interiorização e periferização da epidemia, principalmente nas grandes capitais. A parcela da população brasileira com piores condições socioeconômicas se vê diante do dilema entre continuar trabalhando para sobreviver e se expor a um possível contágio em locais de trabalho precários e informais, transportes públicos, habitações e vizinhanças sem condições de saneamento e higiene.  Além disso, o acesso a serviços de saúde é precário, quanto mais periféricas física, social e economicamente essas populações estejam. 

Povos e comunidades tradicionais, como indígenas e quilombolas, sofrem as consequências desses processos. Manaus, capital e a única cidade do estado do Amazonas com leitos de UTI munidos de respiradores, recebe um contingente de populações de muitas etnias indígenas que percorrem distâncias impensáveis para qualquer atendimento de urgência. Essa situação se repete em menor escala em qualquer contexto rural em que pequenas comunidades se apoiem em centros urbanos próximos para atendimento médico de maior complexidade, afunilando para as capitais, quanto mais intrincada for a necessidade. A interiorização da doença repercute nos grandes centros urbanos com um potencial exponencial de contágio nas regiões periféricas e mais pobres, o que é uma bomba-relógio para os sistemas de saúde.

A Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e seu Laboratório de Informação em Saúde (LIS) lançaram o “MonitoraCovid-19”, um sistema de informações aberto ao público para o monitoramento da pandemia. Os relatórios elaborados pelo Monitora COVID-19 permitem observar também o processo acentuado de interiorização e tropicalização da doença e óbitos causados pelo vírus, como demonstram os mapas abaixo.

Processo de interiorização da COVID-19 no Brasil entre 13.03 e 23.04 de 2020
Brazil maps with COVID cases 
Fonte: Boletim MonitoraCovid-19

INFORMAÇÃO E TRANSPARÊNCIA

A falta de padronização na divulgação dos resultados constitui um desafio para análises confiáveis e consolidadas. Os Laboratórios Centrais de Saúde Pública Estaduais (LACEN), a Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz) e o Instituto Butantan (no estado de São Paulo) são as instituições de referência para a realização de testes moleculares e divulgação dos resultados, uma vez que o Ministério da Saúde se posiciona de maneira subserviente a interesses políticos da presidência da república e vem boicotando a divulgação e transparência dos dados a nível nacional. Sendo assim, ainda não é possível a testagem em massa da população brasileira. Profissionais da saúde, segurança, outros profissionais que atuam no enfrentamento da doença e seus familiares têm sido prioridade nos testes, e também se veem algumas pesquisas sorológicas incipientes com testes rápidos executadas por essas e outras instituições.

A transparência nos dados se torna essencial para o combate eficiente da doença. No entanto, a falta de comunicação e coordenação entre as esferas municipais, estaduais e Federal tem sido um grande desafio. Os estados e municípios aumentaram consideravelmente a realização de testes moleculares e testes rápidos, o que facilita o acompanhamento da evolução da COVID-19. Entretanto, a falta de apoio do âmbito Federal dificulta a padronização na comunicação de casos e permite discrepâncias entre os números oficiais anunciados em nível nacional e os números oficiais anunciados pelas secretarias estaduais. Na primeira semana de junho, o Governo Federal anunciou que adotaria nova metodologia de contagem de notificações de infecções e número de óbitos pela COVID-19. A quebra metodológica foi vista com desconfiança pelas organizações de saúde em todo o Brasil, além de ter tido repercussão internacional. A imprensa brasileira formou um consórcio para manter a população informada sobre o número de casos e óbitos com base em dados das secretarias estaduais de saúde. O Congresso Nacional também se articula para a construção de um monitoramento da doença que traga confiabilidade aos dados brasileiros.

ECONOMIA E SAÚDE

Os efeitos da COVID-19 sobre a vida das pessoas, sociedade e economia são devastadores. O Banco Mundial já estima a queda de 8% do PIB brasileiro em 2020.  Para amenizar os efeitos da doença sobre a renda da população, o Projeto de Lei 9236/2017 foi aprovado pelo Congresso Nacional no fim de março, estabelecendo o pagamento de auxílio emergencial de R$ 600,00 por três meses para as famílias no setor de trabalho informal, sendo que, se a família for monoparental feminina, o benefício é de R$ 1.200,00, também por três meses. De acordo com os cenários projetados pelo Governo, o PL 9236/2017, transformado em Lei Ordinária 13982/2020, pode atender até 36.4 milhões de famílias ou 117.5 milhões de indivíduos, o equivalente a 55% da população brasileira, e teria um custo estimado de R$ 99.6 bilhões.

Para facilitar a concessão de crédito a médias e pequenas empresas, e também a pessoas físicas, o Governo estima liberar R$ 1,2 trilhões para os bancos. Outras ações no âmbito financeiro permitem que os bancos tomem empréstimos ao Banco Central Brasileiro em montantes de até R$ 68 bilhões. Tais medidas visam assegurar empregos e a permanência de pequenas e médias empresas no mercado. A dúvida que paira é se, de fato, os bancos estão dispostos a assumir a “responsabilidade” por uma atuação ativa na economia ou preferem manter suas margens de lucro.

A falsa dicotomia entre saúde e economia precisa ser deixada de lado. Não há geração de riqueza e renda sem uma população saudável e disposta a trabalhar. Setores econômicos essenciais como supermercados, farmácias e outros devem continuar funcionando para garantir o abastecimento e suprir as necessidades fundamentais da população. No entanto, a interrupção momentânea de outras atividades não-essenciais se mostra fundamental para achatar a curva de transmissão do vírus e possibilitar ao Sistema Único de Saúde salvar muitas vidas. No caso do Brasil, ficou evidente a contribuição essencial dos governadores e prefeitos que, dependendo do Estado e suas condições locais, vêm enfrentando a doença sem apoio do governo Federal. O que mantém o Brasil hoje não é seu presidente, mas os governos locais que têm assumido posturas mais rígidas com relação ao distanciamento social e à condução deste momento de crise generalizada. Com o número de casos e mortes por COVID-19 aumentando no Brasil, as tentativas precárias de “desconfinamento” diferem em Estados e municípios e são dignas de um filme de ficção onde muitas vidas serão perdidas.   

Posted in COVID-19, localnews, Social Inclusion, Governance, Urban Development, Public Policies